sexta-feira, 30 de junho de 2017

O jogo do mistério

Por CLÁUDIO FIGUEIREDO
(Jornal do Brasil - Idéias livros
Rio de Janeiro - Sábado, 29 de outubro de 1994)
(Do Arquivo de Jeová Mesquita hoje pertencente a Fernando Melo)

Ficção
O JOGO DO MISTÉRIO


O que o xadrez, jogo tão rigorosamente cerebral, pode ter em comum com a literatura? Que sedução pode exercer sobre os escritores, supostamente, mais ocupados com a emoção é com o imprevisível? Muitos, no entanto, intuíram que os caminhos por onde passa o xadrez nem sempre são tão retos quanto as linhas de um tabuleiro. O escritor inglês Chesterton já dizia "poetas não enlouquecem; jogadores de xadrez sim". A publicação dos romances O quadro flamengo, do espanhol Arturo Pérez Reverte e A variante Lüneburg, do italiano Paolo Maurensig prova que os elaborados movimentos de uma partida podem servir de tema e modelo de tramas intrincadas.

Até hoje não se sabe exatamente quando e onde o jogo surgiu. Uma das versões dá a Índia como seu berço. De lá teria imigrado para a Pérsia e, através dos árabes, para a Espanha. De qualquer forma sua origem misteriosa serve de pretexto para fábulas como a citada no livro de Maurensig. Histórias que têm um sabor típico de Borges, autor, alias, de um poema sobre o assunto. Nele, uma partida aparece como um ritual que, uma vez em movimento não pode mais ser detido. "Cuando los jugadores se havan ido/ Cuando el tiempo los haya consumido/ Ciertamente no habrá cesado el rito". Borges especula também que nem só as peças são manipuladas, "También el jugador es prisionero (...) de otro tablero / de negras noches y de blancos dias / Dios mueve el jugador, y este, la pieza / Que dios atras de Dios la trampa empieza".

Não é a toa que o xadrez tem servido, ao longo de séculos, de tema para metáforas e alegorias. Ao pesquisar as origens do jogo, estudiosos enxergaram nele um certo simbolismo numérico e até alusões à Astronomia. O xadrez estimula também divagações metafísicas. E não só da parte de poetas, mas até de enxadristas. Quando o russo Boris Spassky disse que o xadrez  era como a vida, o temperamental Bobby Fischer o desmentiu: o xadrez era a própria vida. 

No Brasil, o jogo entrou no mundo da literatura através do romance A variante Gutemburgo, publicado em 1977. Nele, o escritor Esdras do Nascimento atribuiu aos homens a posição das peças pretas, e às mulheres as brancas. Quando as peças se movem para frente, a ação avança no tempo. Quando recuam, a ação volta ao tempo. E quando as torres fazem um movimento lateral, o tempo fica suspenso. Membro do Clube de Xadrez Epistolar Brasileiro, Esdras no momento esta jogando simultaneamente 89 partidas. Todas por correspondência. Cada uma delas costuma durar cerca de um ano e meio. A paciência, segundo ele, não é a única virtude comum ao xadrez e à literatura: as duas atividades "exigem tanto um sentido para a composição quanto ousadia e imaginação". O escritor vai mais longe: "Quem não joga xadrez não pode escrever um romance".

Que rigor intelectual não era incompatível com a imaginação e até com humor foi provado pelo reverendo Charles Lutwidge Dodgson, mais conehcido como Lewis Carroll. Além de matemático, o autor de Alice no país das maravilhas tinha uma atração toda especial por enigmas. Nele, Alice descobria, do outro lado do espelho, um país estranho, que se estendia sobre um enorme tabuleiro, onde ela e os personagens da história contracenam segundo a lógica de uma partida.

O xadrez também está no centro do romance A defesa, publicado ainda em russo, em 1930, por Vladimir Nabokov, em Berlim. O próprio autor chama a atenção para o fato de que este era seu livro que emitia "mais calor": "o que pode parecer estranho, considerando-se o quão supremamente abstrato é considerado o xadrez". O herói do romance, o russo Luzhin, um campeão de nível internacional, rememora sua turnés evocando não as paisagens ou estações, mas os ladrilhos dos diferentes banheiros dos hotéis. "Aquele chão com quadrados brancos e azuis onde, de seu trono, descobriu e lobrigou continuações imaginárias da partida decisiva em andamento. Nabokov procurou dar "à descrição de um jardim ou uma viagem a aparência de uma partida disputada com talento e, especialmente nos capítulo finais, de um bem ordenado ataque de xadrez demolindo os elementos mais profundos da sanidade mental do pobre sujeito" - seu infeliz herói.


Um comentário:

  1. Não devemos esquecer o escritor austríaco Stefan Zweig que escreveu Schachnovelle em Petrópolis. Publicada em 1942 como "A Partida de Xadrez" pela Editora Guanabara-Koogan, a novela também virou filme e foi tema de diversas manifestações artísticas.

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